Dez anos antes de publicar Oblómov, Gontcharóv enviou para uma revista, com o nome “Episódio de um Romance Inacabado”, o que posteriormente seria o capítulo IX da obra. Esse foi um dos capítulos mais impressionantes da literatura russa que eu já li.
Ecoando O Grande Inquisidor de Dostoiévski, esse me parece um capítulo que pode andar sozinho – condensa o âmago da obra, aprofunda o arquétipo do homem supérfluo e carrega uma ironia sutil e devastadora.
Aqui temos um aristocrata decadente da Rússia do Século XIX que foge de seus problemas cotidianos sonhando com a infância. Uma infância idílica, cercada de mimos, mujiques servis e uma ânsia por aventuras jamais vividas. O pequeno Oblómov tinha dentro de si uma vontade de correr, pular, explorar os campos a seu redor – uma possível metáfora do mundo “lá fora” – mas a família, sempre preocupadíssima com o bem-estar, com a gordura acumulada, com o conforto, impedia o menino de viver.
O mais curioso é que o início do capítulo parece um poema bucólico. A escrita de Gontcharóv evoca o Jardim do Éden – uma natureza exuberante, harmônica, quase inocente. Sentimo-nos confortáveis. E é aí que o autor nos engana. A zona de conforto, aqui, é uma armadilha disfarçada de paraíso, e cobra seu preço.
Os anos passam, apesar de não parecer; estamos parados no tempo do mundo servil. A aristocracia russa começa a se inquietar: cargos públicos exigem formação, títulos já não são garantia de “subir na vida”. E a família de Oblómov, então, cogita dar ao menino alguma educação. Mas tudo permanece num registro de caricatura, ironia e hesitação.
A figura do professor alemão Stoltz — símbolo da seriedade e da mobilidade — representa essa ruptura possível. Mas a família resiste. Stoltz é visto como rígido demais, estrangeiro demais, perigoso demais. Oblómov, ao voltar das aulas, está sempre mais magro. Tudo parece um sacrifício absurdo.
“O alemão era um homem sério e rigoroso, como quase todos os alemães.
(...) exceto a casa de Stoltz, tudo respirava a mesma preguiça primitiva, a simplicidade de costumes, o sossego e a imobilidade.” (p. 146-147).
Essa seriedade na busca pelo conhecimento não interessa à família do nosso personagem. Eles sonham com uniformes, salários e boa vida para o menino, mas os meios necessários para alcançá-los soam muito desconfortáveis e perigosos. Estudar? Sair de casa? Ler livros? Tudo parece muito complicado.
“Ele nem imaginava que a leitura pudesse ser uma necessidade fundamental, e considerava aquilo um luxo, uma coisa sem a qual podia viver facilmente, assim como era possível ter ou não ter um quadro na parede, dar ou não um passeio: para ele não tinha a menor importância qual era o livro; olhava para ele como uma coisa destinada a ser uma distração do tédio, do fato de não ter o que fazer.” (p. 165)
Gontcharóv não economiza na ironia para criticar aquele que recebeu o nome de “homem supérfluo” na literatura russa; mas o que mais me impressionou na leitura desse capítulo foi a sensação que ele conseguiu criar. O conforto inicial com as cenas da vida tranquila nos campos russos: a fatura de comida, os animais nos arredores, o camponês e o criado como que numa vida feliz. O autor nos tira dessas belas paisagens das pinturas bucólicas e joga o balde de água fria da realidade: a zona de conforto é uma areia movediça. Quando você quiser sair dela, vai precisar de um esforço descomunal – e esse esforço muitas vezes vai te afundar ainda mais.
Amo esse livro!